Empresas da Zona Franca da Madeira afinam armas contra o Fisco Os advogados estão a preparar-se com todos os meios para responder às notificações da Autoridade Tributária para que as empresas devolvam os benefícios fiscais que terão recebido ilegalmente e a expectativa é que os processos inundem o TAF do Funchal e só terminem no Constitucional. Filomena Lança | [email protected] “Estamos num tabuleiro de xadrez e temos de deixar a Autoridade Tributária fazer a primeira jogada.” Depois disso, é avançar e, se necessário, fazer chegar o caso ao Tribunal Constitucional, com processos que “ninguém acredita que sejam céleres”. Mariana Gouveia de Oliveira, fiscalista da Abreu Advogados, tem várias clientes entre as empresas da Zona Franca da Madeira e não esconde a expectativa. “Este é um problema complexo, que tem várias dimensões, seja de direito europeu, de direito fiscal português ou mesmo de direito constitucional, porque há aqui claramente um problema de tutela da confiança”, explica. Depois de, no passado domingo, o jornal Público ter noticiado que o Fisco vai avançar com as notificações às empresas da Zona Franca da Madeira para que estas devolvam os benefícios fiscais que terão recebido indevidamente desde 2007, a comunidade fiscal ficou de sobreaviso, ou não estejam em causa qualquer coisa como mil milhões de euros e mais de três centenas de empresas que se vão ver a braços com liquidações adicionais de IRC. As impugnações, acredita Mariana Gouveia de Oliveira, estão praticamente garantidas e a fiscalista antecipa que “vão inundar” o tribunal administrativo e fiscal do Funchal, que há de ser o foro competente. Mas o que está, afinal, em causa? No final de 2020, a Comissão Europeia considerou ilegal a forma como Portugal concedeu isenções fiscais a um conjunto de empresas licenciadas na zona franca. O executivo comunitário concluiu, depois de uma operação de investigação e monitorização, que tinham sido aplicadas reduções fiscais “a empresas que não contribuíram verdadeiramente para o desenvolvimento da região”. Para terem acesso a uma taxa de IRC mais baixa, as sociedades teriam, nomeadamente, de criar e manter um conjunto de postos de trabalho no arquipélago, o que não terá acontecido. Isso, entende Bruxelas, viola as regras em matéria de auxílios estatais, na medida em que, não estando as empresas a cumprir e não tendo atividade real nas ilhas, ficava em causa a concorrência no mercado interno. Os valores que as empresas tinham deixado de pagar teriam de ser recuperados integralmente, acrescidos de juros. O Fisco tem estado a ajustar com Bruxelas a melhor forma de fazer esta cobrança e, um ano e meio depois da decisão, as notificações deverão agora começar a chegar às caixas do correio das sociedades. Mas o processo não será fácil, antecipa Mariana Gouveia de Oliveira. Desde logo porque “há aqui todo um mundo: empresas pequenas, outras com uma dívida gigantesca, empresas que já foram liquidadas, algumas que ainda estão na Madeira, outras que já saíram há décadas”. Para muitas, “provavelmente significará a insolvência”, diz. Recebida a notificação, as empresas terão um primeiro direito de audição e depois, ou pagam, ou reclamam ou impugnam e vão para tribunal, explica António Gaspar Schwalbach, sócio da SLCM. Terão de prestar garantia – de valor igual à dívida, mais juros e custas de processo – ou pedir dispensa da mesma, alegando, nomeadamente, insuficiência de património. Depois, se alegarem logo de início que está em causa uma violação da Constituição, o processo poderá, no limite chegar ao Tribunal Constitucional. Um processo longo, admite o advogado: “Não é raro esperarmos dez anos por um processo nos TAF e por vezes quase outro tanto em recursos”, resume. Por outro lado, continua o especialista, há toda uma “esquizofrenia” à volta deste assunto. É que, num processo paralelo, o Estado português está a contestar, junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a decisão da Comissão. E, na altura da pandemia, recorde-se, foi admitido, junto da instância europeia, um “prejuízo grave e irreparável”, na medida em que se poderia levar à cessação de atividade das empresas na zona franca, mas o tribunal considerou que tal hipótese não fora provada. “Tendemos a concordar com muitos dos argumentos esgrimidos junto do TJUE pelo Estado, que considera que a Comissão não tem toda a razão e que a qualificação dos factos merece ser contestada”, afirma Mário João Fernandes. E é isso que a maioria das empresas se preparará para fazer, sendo certo que, enquanto não for conhecido o teor das notificações, “todos os caminhos se mantêm em aberto”, diz Mariana Gouveia de Oliveira. ----- "O carteiro pode não tocar para todas" Estão em causa impostos ou auxílios de Estado? Neste último caso, até aos 200 mil euros não deverá haver devolução. Entre as mais de duas mil empresas com presença na Zona Franca da Madeira permanece a incerteza sobre quem vai receber a fatura da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para devolver os benefícios que o Fisco sustenta terem sido recebidos ilegalmente ao longo dos últimos anos. De acordo com o jornal Público, as visadas somam 311 e o montante envolvido poderá chegar aos mil milhões de euros, juros incluídos. Como a investigação da Comissão começou em 2015, as regras da prescrição permitiram recuar aos impostos de 2007 e no final do ano passado. estão em causa as reduções de impostos aplicadas desde aquele ano - ao longo desse período, recorde-se, foram aplicadas taxas de IRC de apenas 3% entre 2007e 2009, de 4% nos três anos seguintes e de 5% entre 2013 e 2020. Mas pode haver empresas que estão protegidas, explica Mário João Fernandes. Será o caso daquelas cuja dívida apurada pelo Fisco seja inferior a 200 mil euros. Nesses casos, explica, estaria em causa o chamado regulamento relativo aos "auxílios de minimis", que são ajudas estatais de pequena monta concedidos às empresas, que não têm de ser notificados pelos Estados à CE e cujo montante máximo ê de 200.000 euros por empresa durante um período de três anos." Haverá certamente empresas que escaparão por essa via, pela pouca atividade, ou pela sua dimensão, pelo que é possível que o carteiro possa não tocar para todas", refere o especialista. Mas essa regra não se aplicará. naturalmente, às maiores e há empresas que têm sobre a cabeça a ameaça de terem de devolver dezenas de milhões de euros. Na verdade, insiste Mariana Gouveia de Oliveira, "está tudo em aberto" e tudo depende de como a AT fizer as contas. Até porque estamos perante uma situação algo "híbrida", entre "uma liquidação de imposto e uma restituição de auxílio". Por isso mesmo, a recomendação dos especialistas é que as empresas se devem preparar com auditorias internas, recolher o melhor possível a informação contabilística relativa aos anos em causa e "fazer as suas próprias contas". Até porque, acrescenta, por seu turno, António Gaspar Schwalbach, da SLCM, "tudo é impugnável" e, neste caso, "a Autoridade Tributária está a movimentar-se num campo que conhece menos, muito pressionada pela Comissão Europeia". Já do lado do Fisco, não deverá haver contemplações e o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais já garantiu que irão "até ao fim, até ao último ponto da cadeia, para fazer esta exigência".
Empresas da Zona Franca da Madeira afinam armas contra o Fisco
Empresas da Zona Franca da Madeira afinam armas contra o Fisco Os advogados estão a preparar-se com todos os meios para responder às notificações da Autoridade Tributária para que as empresas devolvam os benefícios fiscais que terão recebido ilegalmente e a expectativa é que os processos inundem o TAF do Funchal e só terminem no Constitucional. Filomena Lança | [email protected] “Estamos num tabuleiro de xadrez e temos de deixar a Autoridade Tributária fazer a primeira jogada.” Depois disso, é avançar e, se necessário, fazer chegar o caso ao Tribunal Constitucional, com processos que “ninguém acredita que sejam céleres”. Mariana Gouveia de Oliveira, fiscalista da Abreu Advogados, tem várias clientes entre as empresas da Zona Franca da Madeira e não esconde a expectativa. “Este é um problema complexo, que tem várias dimensões, seja de direito europeu, de direito fiscal português ou mesmo de direito constitucional, porque há aqui claramente um problema de tutela da confiança”, explica. Depois de, no passado domingo, o jornal Público ter noticiado que o Fisco vai avançar com as notificações às empresas da Zona Franca da Madeira para que estas devolvam os benefícios fiscais que terão recebido indevidamente desde 2007, a comunidade fiscal ficou de sobreaviso, ou não estejam em causa qualquer coisa como mil milhões de euros e mais de três centenas de empresas que se vão ver a braços com liquidações adicionais de IRC. As impugnações, acredita Mariana Gouveia de Oliveira, estão praticamente garantidas e a fiscalista antecipa que “vão inundar” o tribunal administrativo e fiscal do Funchal, que há de ser o foro competente. Mas o que está, afinal, em causa? No final de 2020, a Comissão Europeia considerou ilegal a forma como Portugal concedeu isenções fiscais a um conjunto de empresas licenciadas na zona franca. O executivo comunitário concluiu, depois de uma operação de investigação e monitorização, que tinham sido aplicadas reduções fiscais “a empresas que não contribuíram verdadeiramente para o desenvolvimento da região”. Para terem acesso a uma taxa de IRC mais baixa, as sociedades teriam, nomeadamente, de criar e manter um conjunto de postos de trabalho no arquipélago, o que não terá acontecido. Isso, entende Bruxelas, viola as regras em matéria de auxílios estatais, na medida em que, não estando as empresas a cumprir e não tendo atividade real nas ilhas, ficava em causa a concorrência no mercado interno. Os valores que as empresas tinham deixado de pagar teriam de ser recuperados integralmente, acrescidos de juros. O Fisco tem estado a ajustar com Bruxelas a melhor forma de fazer esta cobrança e, um ano e meio depois da decisão, as notificações deverão agora começar a chegar às caixas do correio das sociedades. Mas o processo não será fácil, antecipa Mariana Gouveia de Oliveira. Desde logo porque “há aqui todo um mundo: empresas pequenas, outras com uma dívida gigantesca, empresas que já foram liquidadas, algumas que ainda estão na Madeira, outras que já saíram há décadas”. Para muitas, “provavelmente significará a insolvência”, diz. Recebida a notificação, as empresas terão um primeiro direito de audição e depois, ou pagam, ou reclamam ou impugnam e vão para tribunal, explica António Gaspar Schwalbach, sócio da SLCM. Terão de prestar garantia – de valor igual à dívida, mais juros e custas de processo – ou pedir dispensa da mesma, alegando, nomeadamente, insuficiência de património. Depois, se alegarem logo de início que está em causa uma violação da Constituição, o processo poderá, no limite chegar ao Tribunal Constitucional. Um processo longo, admite o advogado: “Não é raro esperarmos dez anos por um processo nos TAF e por vezes quase outro tanto em recursos”, resume. Por outro lado, continua o especialista, há toda uma “esquizofrenia” à volta deste assunto. É que, num processo paralelo, o Estado português está a contestar, junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a decisão da Comissão. E, na altura da pandemia, recorde-se, foi admitido, junto da instância europeia, um “prejuízo grave e irreparável”, na medida em que se poderia levar à cessação de atividade das empresas na zona franca, mas o tribunal considerou que tal hipótese não fora provada. “Tendemos a concordar com muitos dos argumentos esgrimidos junto do TJUE pelo Estado, que considera que a Comissão não tem toda a razão e que a qualificação dos factos merece ser contestada”, afirma Mário João Fernandes. E é isso que a maioria das empresas se preparará para fazer, sendo certo que, enquanto não for conhecido o teor das notificações, “todos os caminhos se mantêm em aberto”, diz Mariana Gouveia de Oliveira. ----- "O carteiro pode não tocar para todas" Estão em causa impostos ou auxílios de Estado? Neste último caso, até aos 200 mil euros não deverá haver devolução. Entre as mais de duas mil empresas com presença na Zona Franca da Madeira permanece a incerteza sobre quem vai receber a fatura da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para devolver os benefícios que o Fisco sustenta terem sido recebidos ilegalmente ao longo dos últimos anos. De acordo com o jornal Público, as visadas somam 311 e o montante envolvido poderá chegar aos mil milhões de euros, juros incluídos. Como a investigação da Comissão começou em 2015, as regras da prescrição permitiram recuar aos impostos de 2007 e no final do ano passado. estão em causa as reduções de impostos aplicadas desde aquele ano - ao longo desse período, recorde-se, foram aplicadas taxas de IRC de apenas 3% entre 2007e 2009, de 4% nos três anos seguintes e de 5% entre 2013 e 2020. Mas pode haver empresas que estão protegidas, explica Mário João Fernandes. Será o caso daquelas cuja dívida apurada pelo Fisco seja inferior a 200 mil euros. Nesses casos, explica, estaria em causa o chamado regulamento relativo aos "auxílios de minimis", que são ajudas estatais de pequena monta concedidos às empresas, que não têm de ser notificados pelos Estados à CE e cujo montante máximo ê de 200.000 euros por empresa durante um período de três anos." Haverá certamente empresas que escaparão por essa via, pela pouca atividade, ou pela sua dimensão, pelo que é possível que o carteiro possa não tocar para todas", refere o especialista. Mas essa regra não se aplicará. naturalmente, às maiores e há empresas que têm sobre a cabeça a ameaça de terem de devolver dezenas de milhões de euros. Na verdade, insiste Mariana Gouveia de Oliveira, "está tudo em aberto" e tudo depende de como a AT fizer as contas. Até porque estamos perante uma situação algo "híbrida", entre "uma liquidação de imposto e uma restituição de auxílio". Por isso mesmo, a recomendação dos especialistas é que as empresas se devem preparar com auditorias internas, recolher o melhor possível a informação contabilística relativa aos anos em causa e "fazer as suas próprias contas". Até porque, acrescenta, por seu turno, António Gaspar Schwalbach, da SLCM, "tudo é impugnável" e, neste caso, "a Autoridade Tributária está a movimentar-se num campo que conhece menos, muito pressionada pela Comissão Europeia". Já do lado do Fisco, não deverá haver contemplações e o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais já garantiu que irão "até ao fim, até ao último ponto da cadeia, para fazer esta exigência".