Consulta da lista negra “deveria ser condicionada” Isabel Patrício Há vários anos que a Comissão Nacional de Proteção de Dados vem deixando alertas sobre a publicitação da lista dos devedores à Segurança Social. Advogados defendem que não deveria estar disponível para qualquer pessoa. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) voltou a recomendar que o Governo repense a divulgação da “lista negra” dos devedores à Segurança Social, alerta que vem repetindo há vários anos, tendo em conta os danos que poderá causar às empresas e aos cidadãos, mas que, vez após vez, tem sido ignorado. Os advogados ouvidos pelo Jornal Económico defendem que a consulta deve ser, pelo menos, condicionada, isto é, a legislação deveria especificar que motivos permitem o acesso a essa lista, sendo que atualmente qualquer pessoa pode tomar conhecimento dos dados em questão. Foi em 2006 que se decidiu publicar a lista de devedores à Segurança Social. Em 2013, a divulgação foi suspensa, mas a partir de 2016 voltou a ser atualizada, para promover a transparência e aumentar a eficácia na recuperação das dívidas contributivas. Como escreveu o Jornal Económico a 3 de junho, a “lista negra” inclui hoje 12.040 pessoas singulares e 22.776 pessoas coletivas. Ora, há vários anos que a divulgação desta lista está envolta em polémica, pelos efeitos “manifestamente excessivos” que pode ter, nas palavras da CNPD, aviso que foi repetido no parecer desta entidade ao Orçamento do Estado para 2022. No entender da Comissão Nacional de Proteção de Dados, a informação em causa poderá levar à “discriminação injusta de pessoas”, uma vez que, considerando que é publicada na internet, a sua utilização pode acontecer “muito para além do período de tempo que a lei considerou”, perpetuando-se. Mais, frisa Clara Guerra, consultora-coordenadora da referida entidade, a publicação na internet “implica que o universo de destinatários extravasa o território nacional”. “É um verdadeiro excesso”, enfatiza a responsável, que alerta: “[A informação] pode ser usada para qualquer fim, por qualquer terceiro. Por exemplo, [pode ser usada] para alimentar perfis sobre crédito e solvabilidade, mesmo tratando-se de dados desatualizados ou que fazem parte de um passado longínquo. Depois de o nome da pessoa ser publicado na internet, o dano está feito.” Perante este cenário, os advogados defendem que a consulta desta lista deve ser, pelo menos, condicionada. “A lista é útil, mas não deveria ser acessível a qualquer pessoa, sem existir um motivo para a consulta. A lei deveria estipular os motivos para aceder a esta lista”, salienta Simão de Sant’Ana, sócio contratado da Abreu Advogados, detalhando que, por exemplo, a necessidade de contratar uma determinada empresa poderia ser um dos motivos que permitissem a consulta. Joana Mota Agostinho, sócia da Cuatrecasas, concorda que o acesso deveria estar condicionado “a quem realmente precisa da informação”, ainda que alerte que esse processo de seleção tivesse de ser “pouco burocrata’’. Na mesma linha, a equipa de data protection da Uría Menendez entende que a lista não deveria ser eliminada, mas o acesso deveria ser “condicionado numa base de need to know para evitar acessos indevidos e desproporcionais em relação à sua finalidade”. “O acesso a estas listas deveria cingir-se às funções e instituições que tenham necessidade e legitimidade para aceder às mesmas. Ou seja, sim estas listas devem ser de acesso condicionado e devidamente justificado”, junta-se Ana Bastos, sócia da Antas da Cunha Ecija & Associados. Já Marta Salgado Areias, associada sénior PLMJ, vai mais longe: “Diria que se poderia acabar com a lista de todo, mas, se se concluir que é relevante, pode-se avançar para um sistema em que se faça um requerimento fundamentado”. Proteção de dados só cobre particulares O exemplo é dado por Marta Salgado Areias: num processo de recrutamento, se o empregador descobrir que um dos candidatos tem dívidas à Segurança Social, essa informação pode ter impacto na forma como essa pessoa é vista. A discriminação até poderia ser objeto de uma queixa junto da CNPD, porque estaria em causa “um tratamento ilegítimo dos dados”, mas fazer prova disso “seria muito difícil”, admite a advogada. Simão de Sant’Ana fala também numa “cruzada penosa”, para as pessoas singulares e avisa que a proteção no caso das empresas é ainda mais reduzida. Clara Guerra confirma: “A legislação de proteção de dados só protege os dados das pessoas singulares, não das pessoas coletivas. Como está, dizem também os empresários, a legislação pode trazer um handicap para o futuro das empresas, cujos dados devem ser salvaguardados, defende Jorge Pisco, líder da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas. Afonso Luz, vice-presidente da mesma associação, atira que “é sempre uma mancha que fica na imagem da empresa”, sendo depois difícil limpar. “Não se justifica sequer a existência dessas listas”, defende, duvidando até do efeito desta medida na recuperação dos valores em falta. Quando à constitucionalidade da lista, idealmente, diz a advogada da PLMJ, seria a Provedora de Justiça a levar essa questão ao Palácio Ratton. Questionado, o gabinete de Maria Lúcia Amaral explica que não tem recebido queixas sobre esta lista e salienta que há uma entidade própria que se dedica à proteção de dados, a CNPD.
Consulta da lista negra “deveria ser condicionada”
Consulta da lista negra “deveria ser condicionada” Isabel Patrício Há vários anos que a Comissão Nacional de Proteção de Dados vem deixando alertas sobre a publicitação da lista dos devedores à Segurança Social. Advogados defendem que não deveria estar disponível para qualquer pessoa. A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) voltou a recomendar que o Governo repense a divulgação da “lista negra” dos devedores à Segurança Social, alerta que vem repetindo há vários anos, tendo em conta os danos que poderá causar às empresas e aos cidadãos, mas que, vez após vez, tem sido ignorado. Os advogados ouvidos pelo Jornal Económico defendem que a consulta deve ser, pelo menos, condicionada, isto é, a legislação deveria especificar que motivos permitem o acesso a essa lista, sendo que atualmente qualquer pessoa pode tomar conhecimento dos dados em questão. Foi em 2006 que se decidiu publicar a lista de devedores à Segurança Social. Em 2013, a divulgação foi suspensa, mas a partir de 2016 voltou a ser atualizada, para promover a transparência e aumentar a eficácia na recuperação das dívidas contributivas. Como escreveu o Jornal Económico a 3 de junho, a “lista negra” inclui hoje 12.040 pessoas singulares e 22.776 pessoas coletivas. Ora, há vários anos que a divulgação desta lista está envolta em polémica, pelos efeitos “manifestamente excessivos” que pode ter, nas palavras da CNPD, aviso que foi repetido no parecer desta entidade ao Orçamento do Estado para 2022. No entender da Comissão Nacional de Proteção de Dados, a informação em causa poderá levar à “discriminação injusta de pessoas”, uma vez que, considerando que é publicada na internet, a sua utilização pode acontecer “muito para além do período de tempo que a lei considerou”, perpetuando-se. Mais, frisa Clara Guerra, consultora-coordenadora da referida entidade, a publicação na internet “implica que o universo de destinatários extravasa o território nacional”. “É um verdadeiro excesso”, enfatiza a responsável, que alerta: “[A informação] pode ser usada para qualquer fim, por qualquer terceiro. Por exemplo, [pode ser usada] para alimentar perfis sobre crédito e solvabilidade, mesmo tratando-se de dados desatualizados ou que fazem parte de um passado longínquo. Depois de o nome da pessoa ser publicado na internet, o dano está feito.” Perante este cenário, os advogados defendem que a consulta desta lista deve ser, pelo menos, condicionada. “A lista é útil, mas não deveria ser acessível a qualquer pessoa, sem existir um motivo para a consulta. A lei deveria estipular os motivos para aceder a esta lista”, salienta Simão de Sant’Ana, sócio contratado da Abreu Advogados, detalhando que, por exemplo, a necessidade de contratar uma determinada empresa poderia ser um dos motivos que permitissem a consulta. Joana Mota Agostinho, sócia da Cuatrecasas, concorda que o acesso deveria estar condicionado “a quem realmente precisa da informação”, ainda que alerte que esse processo de seleção tivesse de ser “pouco burocrata’’. Na mesma linha, a equipa de data protection da Uría Menendez entende que a lista não deveria ser eliminada, mas o acesso deveria ser “condicionado numa base de need to know para evitar acessos indevidos e desproporcionais em relação à sua finalidade”. “O acesso a estas listas deveria cingir-se às funções e instituições que tenham necessidade e legitimidade para aceder às mesmas. Ou seja, sim estas listas devem ser de acesso condicionado e devidamente justificado”, junta-se Ana Bastos, sócia da Antas da Cunha Ecija & Associados. Já Marta Salgado Areias, associada sénior PLMJ, vai mais longe: “Diria que se poderia acabar com a lista de todo, mas, se se concluir que é relevante, pode-se avançar para um sistema em que se faça um requerimento fundamentado”. Proteção de dados só cobre particulares O exemplo é dado por Marta Salgado Areias: num processo de recrutamento, se o empregador descobrir que um dos candidatos tem dívidas à Segurança Social, essa informação pode ter impacto na forma como essa pessoa é vista. A discriminação até poderia ser objeto de uma queixa junto da CNPD, porque estaria em causa “um tratamento ilegítimo dos dados”, mas fazer prova disso “seria muito difícil”, admite a advogada. Simão de Sant’Ana fala também numa “cruzada penosa”, para as pessoas singulares e avisa que a proteção no caso das empresas é ainda mais reduzida. Clara Guerra confirma: “A legislação de proteção de dados só protege os dados das pessoas singulares, não das pessoas coletivas. Como está, dizem também os empresários, a legislação pode trazer um handicap para o futuro das empresas, cujos dados devem ser salvaguardados, defende Jorge Pisco, líder da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas. Afonso Luz, vice-presidente da mesma associação, atira que “é sempre uma mancha que fica na imagem da empresa”, sendo depois difícil limpar. “Não se justifica sequer a existência dessas listas”, defende, duvidando até do efeito desta medida na recuperação dos valores em falta. Quando à constitucionalidade da lista, idealmente, diz a advogada da PLMJ, seria a Provedora de Justiça a levar essa questão ao Palácio Ratton. Questionado, o gabinete de Maria Lúcia Amaral explica que não tem recebido queixas sobre esta lista e salienta que há uma entidade própria que se dedica à proteção de dados, a CNPD.